O amor, desde que foi apreendido como tal na história da humanidade, tem sido uma das manifestações humanas mais testemunhadas, como na arte: na música, na literatura, nas artes plásticas, no cinema, na dança… Talvez porque o se vincular, o se enlaçar ao outro, como característica fundamental do amor, revele a condição para o processo de humanização do qual somos efeito, ou seja, a nossa vida só é possível com um outro que possa nos acolher e nos inaugurar na cultura. Além disso, o amor tem assumido um lugar grandioso na nossa história pelo fato de relançar o enigma sobre o que manteria ou não o enlaçamento, afinal, o fato de se enlaçar implica que duas vidas são separadas uma da outra: o que posso fazer para ser amado? O termo aliança – proveniente do hebraico – significa “corte”. É nesse sentido que no amor trata-se de relacionamento, ou seja, para que este se sustente, é necessária uma contínua refeitura do laço.
No dia 12 de Junho, no Brasil, se comemora “o dia dos namorados”, para a euforia da reprodução capitalista que cria a necessidade de se comprar um presente para o(a) amado(a), e para aqueles que creem no milagre do santo casamenteiro, o Santo Antonio, o qual enviaria um amor, e para isso apela-se para muitos rituais, como: amarrar a imagem do Santo Antonio pelo pé, por de ponta cabeça, deixar na geladeira, tirar-lhe o menino Jesus.
E a proposta de tirar proveito desta data se dá com o objetivo de refletir sobre os modos como o laço amoroso se constitui. Assim, meu gesto é de partilhar algumas reflexões sobre o amor por meio da articulação entre a psicanálise, a arte, a história e a política.
Na perspectiva do amor como uma construção social e especificidade do humano, como ele se deu na história? Hipotetizamos que o amor tenha se dado na experiência humana de prestar homenagens aos seus mortos. Em 1908, dois padres descobriram uma tumba neandertalense de nossos ancestrais na França – os Neandertais surgiram há pelo menos 400 mil anos. E nesta tumba havia ferramentas, o que era indicativo de um enterro intencional, de uma manifestação simbólica e terna para aquela vida que foi embora. Essa hipótese é colocada em dúvida por outras pesquisas, mas de qualquer forma, o ato de enterrar, cuidar e ornamentar revela que a vida que morreu foi importante e amada.
Como apontamos, o amor se põe como um laço simbólico que une os amantes, o que pressupõe uma separação entre os envolvidos. E o que sustenta o laço? É importante escutar o fato de que o modo como nós fomos amados e amamos na nossa infância – justamente pelo fato da marca do que foi primordial e se inscreveu no psiquismo – se atualizará nas relações amorosas no tempo adulto. Isso conduz Freud a indicar que todo encontro amoroso é na verdade um reencontro, fazendo referência às “raízes infantis do amor”. Nesse sentido, seria interessante que o amante se questionasse se os traços daqueles com os quais se relaciona se repetem. Ainda que o eu não queira saber, não é raro que ele se defronte com “clichês estereotípicos”, ou seja, com uma compulsão à repetição a estabelecer certos tipos de relações que possam, fantasisticamente, recuperar uma satisfação vivida. E isso se encontra tão cristalizado ao ponto de que se o outro não se encaixar no estereótipo psíquico e inconsciente, este outro é recusado pelo eu. É por isso que Freud recomendava fazer análise antes de tomar a decisão de se casar, justamente para se investigar qual o lugar psíquico que o amado está ocupando.
Esse modo de relação é uma manifestação do amor narcísico, o qual constrói, metaforicamente, um nó. Este amor, que se configura como um amor-paixão, no qual o outro é idealizado e apreendido como a metade que falta para completar o amante tende a ser fracassado, justamente pelo fato da recusa do reconhecimento de que a completude é impossível. Nesse sentido, o relacionamento como um “nó” se mantém como tal, narcísico e egoísta, e não desata para fazer o laço amoroso. Casos como o ciúme exarcebado, a possessão do outro, o relacionamento abusivo, a violência, o chamado “dedo podre”, aqueles que ficam mendigando amor, adoecimentos diversos, são algumas das manifestações desse “nó”, o qual se dá por meio de uma parceria sintomática que não é elaborada. Afinal, o sintoma para a psicanálise é o que nos diferencia, é nosso modo singular de nos posicionar na vida, portanto, é impossível abrir mão, inteiramente, do nosso sintoma. Mas é possível abrir mão de parte do sintoma de modo a dar um destino diferente da dor sintomática e bendizê-lo.
Para haver laço amoroso é preciso que haja o reconhecimento da falta nos amantes. Visualmente, para o laço amoroso se fazer é preciso que no coração de cada amante habite uma falta por onde o laço poderá passar, de modo que o amante seja amado e o amado seja amante. É nesse sentido que Lacan vai dizer que “o amor é dar o que não se tem”. Ou seja, o amado não tem aquilo que venha preencher a falta do amante, até porque se sabe que isso é impossível. Então, há a partilha da falta, por onde vão passar os laços amorosos como uma forma de reafirmar o relacionamento, portanto, o amor. E fazer o laço nada mais é que desejar, desejar continuamente, de modo a sustentar o amor entre os envolvidos.
Desse modo, no amor há um tanto de desinvestimento no amor narcísico, o que vai possibilitar o sair de si, a entrega. E a entrega implica em arriscar-se, na não garantia. Por isso, em alguns casos, quando os sujeitos têm o vislumbre do amor, sentem medo, boicotam essa possibilidade amorosa justamente para não se defrontarem com o fato de que não há garantias. E quais garantias? Para quê ter garantias?
Como Caetano Veloso compôs: “Mas e se o amor pra nós chegar, de nós de algum lugar/ Com todo o seu tenebroso esplendor?/Mas e se o amor já está,/ se há muito tempo que chegou e só nos enganou?” Os amores estão sempre no ar! O humano tem uma vocação para amar – para odiar também –, mas reconhecer o amor no seu “tenebroso esplendor”, como aquilo que vai ressoar em nosso corpo, fazendo este vibrar de um modo diferente, é preciso coragem para sair de nós mesmos e experimentarmos o amor possível.
E quanto às relações amorosas na contemporaneidade? É corrente dizer que antigamente os relacionamentos duravam muito mais que hoje. É importante notificar que, depois de um processo secular, o divórcio foi sancionado apenas em 26 de dezembro de 1977. Além disso, neste tempo referido, o machismo e o conservadorismo religioso eram pouco questionados, de modo que a promessa de relacionamento “até que a morte nos separe” desembocava em um aprisionamento. “No era paz, era silencio”, estava escrito em um cartaz segurado por uma senhora chilena, o que põe em questão a durabilidade das relações de antigamente.
Quanto à atualidade, é preciso refletir que o capitalismo como estruturante da sociedade constitui também os nossos modos de se relacionar. Na produção capitalista, o outro é tornado uma mercadoria, de modo que, se o outro não reflete a imagem do eu narcísico, se o outro apresenta qualquer “defeito”, ele é descartado. Mas por outro lado, é também nesse tempo que a luta feminista, que a luta pelo lugar de fala como luta pela existência tem se colocado e se espalhado, de modo que a violência no relacionamento tem sido um pouco mais enfrentada. Assim, se o amor só dói, é importante questionar o que mantém esta relação e as respostas que vierem convocarão decisões. Afinal, “pra quê rimar amor e dor?”
Que possamos fazer a travessia do nó ao laço! Enquanto no nó acontece a repetição do próprio nó, no laço há a circulação, a respiração, que possibilita a reinvenção de um amor possível.
“Podemos ver o mundo juntos, sermos dois e sermos muitos/ nos sabermos sós sem estarmos sós/Abrirmos a cabeça para que afinal floresça o mais que humano em nós.” Ser dois e ao mesmo tempo assumir a multiplicidade dos laços, porque os amantes não se bastam e nem querem se bastar, mantendo assim o respiro do amor sem possessão, mas com a confiança e o desejo de caminhar juntos, mesmo quando estão sozinhos – o que não corresponde à solidão. Como Caetano ilumina, no laço amoroso há o florescimento do “mais que humano”, como a reafirmação da vida com toda a sua potência.
Mantendo o pulso da música da vida, que os amantes possam compor inúmeras músicas, levando em conta o fato de que, esta música louvada no amor é, essencialmente, desafinada! E que possamos musicar, mesmo assim!
Psicanalista, mestre em psicanálise: Clínica e Cultura (PUC-RJ) e psicólogo educacional da UFSC
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- Tá combinado. Interpretação: Gal Costa. Composição: Caetano Veloso. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PEzM_dzzyd4
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- Tá combinado. Interpretação: Gal Costa. Composição: Caetano Veloso. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PEzM_dzzyd4