Acho particularmente marcante como algumas músicas e filmes retornam no final de ano como emblemas desse momento específico – mais um fim, mais um final. “All I Want for Christmas”, da Mariah, “Então é Natal”, da Simone e filmes como “Grinch”, “Esquecerem de Mim”, entre outros. Este momento costuma ser marcado por celebrações culturais amplamente partilhadas, como o Natal e as festas da virada.
Em meio a isso, é comum notar-se pensativo, com uma sensação de tristeza ou mesmo alguma ansiedade, sentimentos que podem se mostrar associados ao momento em que um fim se aproxima, ou mesmo associados à parte mais prática do final do ano, que envolve ver e reunir-se com familiares. É sobre isto, esses sentimentos que podem ser mais ou menos confusos, que eu gostaria de falar.
Quando já não se convive tanto com a família e neste momento há o costume de vê-los novamente, este pode ser um momento bastante angustiante. Quando não há uma convivência próxima, é possível que as relações mudem. Algumas não resistem e o vínculo se rompe – ou é rompido, ativamente – e, além disso, algumas relações mudam. É possível que se tornem mais amenas, menos conflituosas. Mas a convivência próxima, por alguns dias que seja, pode fazer a intensidade dos problemas, conflitos, das manias que o outro carrega e que nos irrita profundamente, e vice-versa, aflorar.
O momento de rever familiares para as celebrações do fim do ano pode ser especialmente difícil para pessoas LGBTQIA+. Nem todas as pessoas com sexualidades e/ou gêneros dissidentes tem famílias que reagem mal a este fato, e outras ainda estão no armário. E mesmo quem tem como públicos estes aspectos da sua identidade comumente enfrenta grandes desconfortos ao reunir-se com estes entes queridos.
Assim, também, pode ser difícil passar por esse momento mesmo sem ser uma pessoa de sexualidade e/ou gênero dissidente, mas sim por não ter uma família, ou a sua família. Pessoas que se afastaram de seus familiares por histórico de violência doméstica, por exemplo, também, comumente, têm experiências diferentes no final do ano do que mostra a propaganda da Coca-Cola.
Dito isto, fica claro que o clima cultural nem sempre corresponde à realidade de todos. Mas àqueles que se reúnem em um final de ano com a família, e com isso se angustiam, penso que pode caber uma reflexão. O que te leva a estar aí? E o que te leva a se angustiar? Não há resposta pronta, nem única. Se perguntas abrem portas, espero que essas possam apresentar-lhe algo interessante por trás do batente.
E, pensando no cenário em que, ao final do ano, alguém nota sentimentos e/ou pensamentos que lhe afligem nesse momento, eu gostaria de compartilhar uma reflexão que também me teve. Lembrei, recentemente, do hábito de uma pessoa muito querida, que vi sendo repetido ano após ano. No dia 31 de dezembro, essa pessoa escreve uma carta. Ela reúne suas inquietações sobre o ano que se passou e escreve, também, seus desejos para o ano que se anuncia. E neste pequeno rito anual ela realiza algo que passei a achar importante: ela reflete.
E ter este momento para pensar no que lhe afeta no final de um ano, ou na proximidade do próximo, parece vital. Notar ano após ano o que permanece, o que se repete, o que ainda não aconteceu, é algo que pode fazer parte desse momento sem necessariamente angustiar. Talvez, inclusive, não conseguir reunir-se consigo mesmo, nesse momento ou em outros, seja algo que provoque mais confusão que essa ‘parada reflexiva’, em si.
E, sem dúvida, trends de redes sociais sobre “Como vou ficar triste esse ano se…” não é a reflexão da qual se trata aqui.
Pensando com Elis Regina, numa música que me toca nesse ponto e nesse momento de finais e recomeços, “Fechado pra balanço”:
“Tô fechado pra balançoMeu saldo deve ser bom
(…)Gasto sola de sapato
Mas aqui custa barato
Cada sola de sapato
Custa um samba, um samba e meio
O resto
O resto não dá despesa
Viver não me custa nada
Viver só me custa a vida
E a minha vida foi dada”
Em “Como nossos pais”, ainda com Elis, notamos uma intransigente dificuldade de mudar, ou de aceitar a mudança, que pode atravessar gerações. E em “Fechado pra balanço” encontramos, talvez, um momento para pensar sobre isso – e sobre a vida – que pode ressurgir de tempos em tempos, de finais em finais.
O que custa viver? E qual o custo de não ter vivido algo desejado? Talvez essas possam ser, também, algumas questões suscitadas nesse momento. E dar ouvidos às questões que nos atravessam costuma, ainda, ser uma saída mais frutífera que ignorá-las.
Dito isto… que seja possível comemorar e brindar por aí. Boas festas!