O que dizer daquilo que nos habita ao final de um ciclo? Esperança ou mal estar? Em cada um, manifestam-se proporções distintas desse dueto de sentimentos e sensações, mancomunados que estão com outros elementos que emergem nesse período. Somos tocados de forma acentuada por inquietações e conflitos que povoam a nossa geografia íntima, matéria-prima do viver humano.
O hóspede ao pé da porta pode até ser um pouco conhecido e ainda assim nos afeta, reivindica um espaço quase nunca preparado a contento. Revisitamos algumas dezenas de vezes nossos desejos frustrados, recalculando o que deveria ter sido. Momento de refletir, redefinir, desgostar, aceitar. Mais um ano anuncia a sua chegada e nos flagra envolvidos com a velha matemática de perdas e ganhos. O contentamento com o que foi realizado divide a cena com os planos desfeitos, metas inalcançadas e amores subtraídos, enfim, nos percebemos faltantes.
O ano de 2020, mais do que tudo, esteve marcado pela falta e pela perda. Vidas ceifadas como nunca visto antes, pessoas amadas e pessoas desconhecidas somando estatísticas dramáticas. Cenário de guerra, de privação de liberdade, de exposição a riscos potencialmente letais. Sabemos cada vez menos a medida do ir e vir de forma segura.
O amanhã pede esperança e estamos exaustos de esperar pelo fim de uma pandemia, algo que ainda não se sabe ao certo o que é mostra transformação veloz e não sabemos como conter. Constatamos que aumenta distâncias e revela impotências e esse tem sido um grande trabalho que se agrava na iminência do final do ano, encarar nossas fragilidades e limitações.
Momento de passar a limpo as ilusões, idealizações, frear cobranças internas excessivas e render homenagem às conquistas, nossos grandes e pequenos êxitos que passam injustamente despercebidos, nossas maravilhas ignoradas, como por exemplo, decidir preparar um bom prato de macarrão em vez de ficar vigiando a poeira.
As coisas simples tiveram a chance de se fazer valiosas neste ano de impedimentos, sabor e aroma daquilo que propõe uma concepção mais ampla da vida e da humanidade, que nos salva de ameaças externas e de nossos próprios abismos. Viagens foram canceladas e fomos induzidos a adentrar nossos mundos subterrâneos, para alguns essa foi uma trajetória possível, dores e descobertas, resgates e reparações. Para muitos outros, a grande batalha foi sobreviver.
E, sobre o viver, o passado incansavelmente nos dá notícias, cobra seus dividendos e nos coloca no ajuste de contas para encerrar o ciclo. Diante de um novo ano, velhas barganhas, velhos fantasmas e novas fantasias. Quais reformas foram feitas e quais foram adiadas? Será que a nossa bagagem mental foi apenas repaginada com outras vírgulas e parêntesis? Somos especialistas em sobrepor percepções e projetar cenários. Nossa finitude nos adverte sobre a importância de abrir mão dos imperativos de controle, limpar o terreno criativo, rever fronteiras, render-se à beleza do inesperado e fazer as pazes com as nossas sagradas imperfeições. No entanto, insistimos em fazer novas projeções, quando tudo o que se precisa é abrir um par de janelas para o real da vida, difícil tarefa para realizar sozinhos.
Estamos sofridos e precisados de alguém que nos acolha em nossas vulnerabilidades lindamente humanas, em vez de buscar apoio teimamos em sorrir sem vontade, evitamos chorar digna e sinceramente e muitas vezes assumimos mandatos que não nos dizem respeito.
Fugindo do impalpável, do que não se pode medir, nos refugiamos em ideais protocolares, quase sempre negando desejos fundamentais. Não, as uvas podiam não estar verdes, quem sabe estavam maduras o suficiente, queríamos sim e fingimos não querer.
A cada novo dia, reconhecer desejos e legitimar urgências da ordem do ser é o que pode nos libertar das ideias delirantes de contradição com a realidade, como nos demonstrou Freud através da psicanálise. É de nossa competência desejar verdadeiramente uma existência pacificada para que possamos com a leveza e confiança possíveis semear minimamente o amanhã.