É de grande valia aos psicanalistas compreenderem a lógica de funcionamento de determinadas estruturas clínicas que podem apresentar maior propensão a atos como o suicídio, mas para o público leigo penso que o viés deve ser outro. Sem contar que saber conceitualmente não nos serve de nada quando não temos material de fala para operarmos clinicamente. Mas gostaria de focar em um outro ponto: a questão social, o momento em que estamos inseridos. Numa sociedade capitalista em que tudo é mercantilizado e vendido, o amor, o ódio, a esperança e a desesperança.
Hoje vivemos num mundo cada vez mais acessível do ponto de vista material, de laços fluídos, em que o sucesso se mede pelo poder de compra. Porém, o ser humano ao invés de sentir-se enlaçado em relações que lhe permitam alguma garantia ou apropriação de sua liberdade, sente-se como se não tivesse saída, como se não conseguisse simbolizar seu mal-estar e chega à clínica com um discurso de desamparo cada vez mais frequente. Depressões, compulsões, ansiedades, pânico, os nomes que a medicina dá para nosso mal-estar.
Foi Freud em que pode enxergar nas histéricas de outrora um sofrimento que partia de moções inconscientes, mas que se manifestava de uma forma tecida pelo social. A questão sexual era muito mais tabu naquela época do que hoje, por isso a forma de apresentação do mal-estar era outra. É Freud também quem nos adverte de que a felicidade plena é impossível pois a intenção de que o homem seja feliz não se encontra no “plano da criação”, pois o que chamamos de felicidade é apenas uma satisfação de necessidades contidas, e isso só ocorreria esporadicamente. (FREUD, 1930[1929];2014, P. 20). Contudo, atualmente vivemos numa sociedade marcada pela advertência a todo instante de que o sujeito não é feliz, mas precisa sê-lo e de que isso é tarefa individual, é só querer.
São muitos ideais que nos rondam, entre eles o ideal capitalista “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez!” gera sofrimento aparentemente inapaziguável. Ao que o discurso, que Lacan (1969-70) nomeou de discurso do capitalista responde que o consumo pode aplacar isso. Este discurso não liga sujeitos, mas sujeito à mercadorias, mercantilizando inclusive as relações sociais.
Ora, se o ato de consumo carrega em si a esperança de completude, da felicidade absoluta, de homeostase do ser, isso fica mais do lado do que Freud nomeou de Pulsão de Morte (FREUD, 1920) . Na contramão disso, poderíamos dizer, na esteira de Lacan, que é o desejo que carrega a possibilidade da permanência de uma falta, que, uma vez reconhecida pode movimentar o sujeito de maneira singular, em direção às Pulsões de Vida, ao passo que o consumo paralisa-o num gozo mortífero. (LACAN, 1972).
O que temos então é um sujeito impossibilitado de reconhecer seu desejo e de se reconhecer desejante, dado que suas possibilidades de desejo parecem restritas ao que lhe é oferecido como garantidor de estabilidade, de uma homeostase, que tem que ver como pulsão de morte, no sentido de morte do desejo. Daí que, embebido pelo discurso capitalista, o sujeito almeja não ser dividido, mas sim uno, completo, inteiro, e segue, sem plena consciência rumo a sua destruição.
Assim, vemos a cada dia o aumento da ansiedade, das depressões, das toxicomanias, do suicídio, que parecem ser, salvo raras exceções, tentativas desesperadas e fracassadas de se chegar num equilíbrio ou num ideal de ser. Não há lugar, a não ser em nossos consultórios, para aqueles que não estão felizes e com sorriso de canto a canto, para aqueles que não chegaram lá, que não conquistaram seu primeiro milhão aos 30 anos. Hoje, segundo Christian Dunker (2005) vivemos numa sociedade entre muros, sob a lógica do condomínio, em que a vida está governada por especialistas que ele denomina de síndicos ao passo que ficamos cada um em seu quadrado, segregados.
No âmbito das políticas públicas há geração de mais e mais segregação. Se se quer falar numa prevenção é preciso repensar o modelo social que temos e o que queremos. Não há como viver apagando focos de incêndio quando a natureza toda queima. Isso é uma metáfora dos nossos dias. O trabalho de um psicanalista ou de um psicólogo clínico é restrito, por mais que se queira aplacar o social ele sempre escapa porque não é algo para se fazer na solidão de um consultório.
Um ser humano que não tem comida, dinheiro, previsão de futuro e que ainda vive sobre ditos de que precisa ser feliz e ter dinheiro e status, o que pode um psicanalista frente a isso? Trabalhamos com material de fala, com nossa escuta e para além disso precisamos nos posicionar criticamente em relação a isso de modo que não nos caiba toda responsabilidade sobre indivíduos que são forjados por um sistema segregador, que segrega a dor e vende paliativos.
É preciso destacar que quando se trata de suicídios é sempre no plural, não há como enquadrar a morte e é preciso escutar o singular de cada um que nos busca sob o risco de tratar em série algo que merece atenção, acolhimento, respeito e lugar no social. Em psicanálise falamos em mal-estar e o ato suicida, que não é atual e remonta de séculos atrás, em alguns casos aparece como uma forma de dar fim a este mal-estar, uma vez que a promessa de nossos tempos é a de que é possível viver o pleno bem-estar, que inclusive figura na lista da OMS como conceito de saúde.
Promessa essa fadada ao fracasso como são todas as promessas e nossa aposta é viabilizar espaços de escuta para que possa emergir o sujeito do inconsciente, desejante, e que possa reconhecendo seu desejo, vivenciar seu mal-estar com acolhimento, respeito e podendo encontrar saídas na sua vida e não da sua vida.
REFERÊNCIAS
DUNKER, C. I. L. Mal-Estar, sofrimento e sintoma. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2005.
FREUD, Sigmund. (1920). Além do Princípio do Prazer. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. VOL: XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
____________. (1930[1929]). O Mal-Estar na civilização. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2014
LACAN, Jacques. (1988). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In J. Lacan. O Seminário – Livro 11. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.
____________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
____________. (1969-1970). O Seminário, livro 17: O Avesso Da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1992.