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O inconsciente na ponta da língua!

O inconsciente na ponta da língua!

Cotidianamente, em nossa vivência, diga-se, maquínica ou técnica, as coisas, os outros e os afazeres tendem a funcionar em harmonia. Nesse mesmo ritmo, aquilo que se ausenta, o destoante e não cooperativo, é rapidamente suplantado pela produtividade. Somos seres bastante produtivos e esse funcionamento, em grande escala, é algo aparentemente infinito. Mas a que eu estou me referindo como “não cooperativo”? Penso naqueles momentos em que começamos o dia depois de um sonho excessivo em seu desconforto ou mesmo em seu agrado, quando algo útil é perdido de vista e nos toma tempo, quando nos esquecemos precisamente daquela palavra urgente ao momento; ou quando, ao nos expressar, deixamos escapar uma palavra errada, que em alguns casos pode até mesmo nos avermelhar a face e deixar-nos envergonhados. Esses momentos tão breves, por que eles não combinam com o ritmo corriqueiro? Ora, a imagem que temos da nossa própria pessoa, essa mesma imagem que pensamos objetivamente ao dizer “Eu”, ela é tão bem composta e unificada de modo que dela não fazem parte esses desvios. Penso não apenas na imagem do espelho, que às vezes expõe uma manchinha ou um detalhe qualquer que pode chamar o olhar a evitá-lo ou observá-lo até demais, porque “não deveria” estar ali. Me refiro também a essa ideia de si mesmo, uma autoimagem, tão concreta que pode ser elencada em diversos aspectos do tipo “eu sou uma pessoa assim e assado, gosto disto e daquilo”. Isso que irrompe tão repentinamente não compõe essa autoimagem que cuidamos tanto em construir.

E se optarmos por inverter essa lógica e dar ouvidos a isso que é disruptivo? O que não encontra lugar em toda a objetividade que nos cerca, chamamos de inconsciente e se apresenta justamente nesses fenômenos de linguagem que nos causam tanta estranheza. Percebemos que apesar das tentativas por suplantar esses estranhos fenômenos, eles persistem e continuam se repetindo. A psicanálise propõe que são nessas entrelinhas, nisso que evitamos levar a sério, em que a singularidade do sujeito aparece. Algo que não se encaixa numa definição, a imagem de si mesmo é simples demais para conter a potência dessa subjetividade. E apesar da resistência, isto é, apesar das tentativas por rapidamente corrigir um deslize de linguagem, ele persiste e retorna. O sintoma funciona assim, como algo que dificilmente pode ser concretizado numa palavra e elaborado a partir do seu significado. Na verdade, o sintoma, pode-se dizer, é resvaladiço, escapa à compreensão pela linguagem dicionaresca e, assim como toda a história singular da subjetividade, não fica escondido em um “lugar”, pelo contrário, de repente surge na ponta da língua.

Por esses motivos, num tratamento psicanalítico, faz-se o convite ao sujeito para que se permita deslizar livremente na sua mais íntima maneira de se expressar e com isso perceber que aquela palavrinha esquecida ou confundida pode conduzir a uma cadeia de palavras tão profundamente implicante, mas que, uma vez trazida à luz, pode enfraquecer um sintoma. Tem uma frase do Freud que representa isso muito bem: “Pompeia sucumbe apenas agora, depois que foi descoberta”. Ou seja, enquanto soterrada, Pompeia estava lá, muito bem preservada, mas uma vez trazida à consciência, experienciamos a sua história como algo que enfim sucumbiu. O sintoma pode funcionar dessa mesma forma.

Indo mais além, Lacan inclusive propôs que essa estranha linguagem do inconsciente possui leis próprias, o que ele chamou como metonímia e metáfora. Em outras palavras, em meio à esquematização de termos dos quais fazemos uso para nos comunicar, com sentidos firmes e bem apresentados nos dicionários, o inconsciente transita pela sonoridade, pelo equívoco e deslocamento. Enquanto na comunicação nos remetemos às coisas, aos outros etc., os equívocos do inconsciente nos remetem ao nosso próprio ser e à particularidade da sua formação. A partir disso está a importância dada pela clínica psicanalítica à fala do sujeito, pois o/a psicanalista está lá para ouvir essa singularidade, em vez de se prender, como fazemos corriqueiramente, ao técnico e maquinal das nossas conversações ocasionais. Lá onde evitamos dar atenção, nisso que surge como menos importante, o sonho ou o deslize, está, afinal, o que mais nos interessa a respeito de nós mesmos.

Não tem aquela famosa pergunta feita por Clarice Lispector? Ela diz assim: “Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?” Com a psicanálise podemos deixar a direção dessa pergunta ressoar.

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